Emanuel de Oliveira Costa Jr.
(Advogado canonista e civil, professor, Presidente da UNIJUC – União dos
Juristas Católicos de Goiás)
O matrimônio, no âmbito da Igreja
Católica, transcende a mera formalidade legal para se apresentar como uma
realidade teológica e jurídica de profunda significação. Este consórcio de toda
a vida, ordenado por sua própria índole natural ao bem dos cônjuges e à geração
e educação da prole, assume, entre batizados, a excelsa dignidade de sacramento[1].
No entanto, a complexidade da condição humana impõe desafios que o próprio
ordenamento canônico se propõe a dirimir, notadamente em face da não consumação
do vínculo. O presente artigo debruça-se sobre o instituto da dispensa do
matrimônio não consumado, suas bases normativas e os intrincados desafios
probatórios, especialmente quando a união envolve a disparidade de culto.
I. A Estrutura Matrimonial Canônica: Entre a Natureza e o
Sacramento
A compreensão do matrimônio exige uma
perscrutação de suas distintas, porém interligadas, dimensões. Primeiramente, é
imperativo reconhecer sua natureza intrínseca como uma instituição de direito
natural e divino. Tal prerrogativa significa que as características essenciais
da união conjugal – a unidade e a indissolubilidade – e seus fins primordiais –
o bem recíproco dos cônjuges e a procriação e educação da prole – são elementos
inerentes a qualquer casamento válido, independentemente do estatuto batismal
das partes envolvidas. Trata-se de um pacto pelo qual um homem e uma mulher se
doam e se acolhem mutuamente em uma comunidade de vida e amor.
A esta fundação natural, soma-se,
para os batizados, a elevação do matrimônio à categoria de sacramento[2],
conforme preceitua o Cânon 1055, §2, do Código de Direito Canônico de 1983.
Este matrimônio, denominado "rato" (ratum), adquire uma
indissolubilidade particular se, além de rato, for "consumado" (consummatum),
tornando-se um vínculo que "nenhuma autoridade humana pode dissolver"
(Cân. 1141). Contudo, a Igreja, em sua solicitude pastoral, também contempla e
regulamenta os matrimônios válidos entre batizados e não batizados, os quais,
embora careçam da sacramentalidade, constituem um vínculo jurídico-natural
legítimo, desde que precedidos da necessária dispensa do impedimento de
disparidade de culto (Cân. 1086).
II. A Consumação Matrimonial: Conceituação e Relevância
Jurídica
A consumação do matrimônio, elemento
fulcral para a compreensão de sua indissolubilidade absoluta, é definida pelo
Cânon 1061, §1, como "o ato conjugal, realizado de modo humano, de que o
matrimônio é apto por sua própria natureza para a geração da prole, ao qual os
cônjuges livremente se dedicaram." Em essência, refere-se à primeira
realização do ato sexual completo e penetrativo após a celebração das núpcias,
possuindo intrinsecamente a potencialidade procriativa.
A ausência de tal consumação confere
ao matrimônio uma peculiaridade jurídica: impede que ele atinja sua plena e
absoluta indissolubilidade. É precisamente essa circunstância que fundamenta a
possibilidade de sua dissolução por um ato gracioso e soberano da suprema
autoridade eclesiástica.
III. A Dispensa Papal: Dissolução do Vínculo Não Consumado (Dispensatio
Super Rato)
Diversamente da declaração de
nulidade matrimonial, que postula a inexistência do vínculo desde sua origem, a
dispensa do matrimônio não consumado pressupõe a pré-existência de um vínculo
matrimonial válido que, por não ter sido consumado, é passível de ser
dissolvido pela autoridade pontifícia.
O Cânon 1142 consagra essa
prerrogativa, estabelecendo que "o matrimônio não consumado, entre
batizados ou entre parte batizada e parte não batizada, pode ser dissolvido
pelo Romano Pontífice por justa causa, a pedido de ambas as partes ou de uma delas,
mesmo que a outra não queira."
Esta dispensa pontifícia abrange,
portanto, ambas as modalidades de matrimônio não consumado:
A) O matrimônio rato e não consumado: Aquele em que ambos os
cônjuges são batizados, e a união, embora sacramental em sua origem, não foi
aperfeiçoada pela comunhão corpórea.
B) O matrimônio válido com disparidade de culto e não
consumado: Aquele em que um dos cônjuges é batizado e o outro não. Embora
careça da sacramentalidade, é um matrimônio válido sob a lei natural, e sua não
consumação também o torna passível da dispensa.
O cerne dessa dispensa não reside na
mera "liberação de obrigações naturais". Sua finalidade precípua e
seu efeito jurídico direto são a dissolução do próprio vínculo matrimonial. Ao
ser concedida, a união que outrora vinculava as partes é desfeita de forma
plena e definitiva aos olhos da Igreja, restituindo-lhes a liberdade para
contrair novo matrimônio canonicamente válido, caso assim o desejem e as demais
condições jurídicas o permitam.
IV. A Extensão da Jurisdição Eclesiástica na Disparidade de
Culto
A natureza da jurisdição da Igreja
sobre o matrimônio com disparidade de culto é um ponto de notável profundidade
conceitual. Embora a parte não batizada não se encontre, por princípio, sujeita
às leis meramente eclesiásticas (Cân. 11), a autoridade da Santa Sé para
dissolver um matrimônio válido não consumado que a envolva não decorre de uma
submissão geral de sua parte ao ordenamento canônico.
Em vez disso, essa prerrogativa advém
de um poder especial da Igreja sobre o vínculo matrimonial em si, poder que se
entende derivado da instituição divina e do "poder das chaves"
confiado a Pedro. O matrimônio, mesmo na disparidade de culto, é reconhecido
como uma realidade de direito natural e divino, e suas propriedades essenciais
são consideradas de origem transcendente, não meramente positiva.
Desse modo, ao conceder a dispensa, a
Igreja atua sobre uma realidade jurídica – o vínculo válido – que, por sua
própria natureza, obriga a ambas as partes. A dissolução do vínculo tem o
condão de liberar ambas as partes daquela união específica. Para o cônjuge
batizado, a consequência é a plena liberdade para contrair novo matrimônio na
Igreja. Para o cônjuge não batizado, a dispensa papal significa que, para os
fins do ordenamento canônico, seu casamento anterior com o católico é
considerado inexistente, removendo assim qualquer impedimento para um futuro
matrimônio canônico, caso venha a se casar com outro católico, por exemplo. Não
se trata, portanto, de impor leis eclesiásticas a quem a elas não está sujeito,
mas de exercer uma prerrogativa divina sobre um vínculo validamente
estabelecido que tem implicações para o ordenamento da Igreja.
V. A Prova da Não Consumação: Da Intimidade aos Meios
Processuais
A comprovação da não consumação é um
dos maiores desafios probatórios, dada a natureza intrínseca e privada do ato
conjugal. No entanto, a busca pela verdade material é um imperativo no processo
canônico (Cân. 1526 §1), e o sistema jurídico eclesiástico oferece instrumentos
para sua elucidação.
O Cânon 1061, §2, estabelece uma
presunção crucial: "Depois da celebração do matrimônio, se os cônjuges
coabitaram, presume-se a consumação; se o matrimônio foi rato, ou rato e não
consumado, é o contrário, permanecendo a prova." Esta presunção iuris
tantum (que admite prova em contrário) inverte o ônus da prova: uma vez
demonstrada a coabitação, caberá à parte que alega a não consumação prová-la. O
Comentário Exegético ao Código de Direito Canônico (Marzoa et al., Vol. III/2,
Comentário ao Cân. 1061) destaca que a coabitação funciona como um
"indício externo de um ato interno que normalmente ocorre entre
cônjuges", visando à celeridade processual.
A prova da não consumação, portanto,
é multifacetada:
A) Depoimento das Partes: As declarações dos próprios
cônjuges são a principal fonte de prova. O interrogatório deve ser conduzido
com prudência, mas com rigor e precisão, indagando sobre os detalhes da vida
íntima, os motivos da ausência do ato conjugal (impedimentos físicos, psicológicos,
recusas reiteradas) e as tentativas de sua realização. A coerência interna das
narrativas e a concordância entre os relatos dos cônjuges são elementos de
peso.
B) Prova Testemunhal: Embora indiretas, as testemunhas podem
oferecer "provas morais" e circunstanciais. Familiares próximos,
amigos ou confidentes podem depor sobre: confissões feitas pelos cônjuges
acerca da intimidade, observações sobre a dinâmica da vida conjugal que
sugeriam a ausência de coabitação sexual (e.g., dormirem em quartos separados),
ou conhecimento de condições de saúde impeditivas. A jurisprudência da Rota
Romana, conforme uma Sentença coram Wynen, de 27 de novembro de 1980
(RR, vol. LXXII, p. 770, n. 4), preconiza que, embora os depoimentos de
parentes devam ser avaliados "com cautela", não devem ser
"sumariamente rejeitados", especialmente quando os fatos se
desenrolam no âmbito familiar e o conhecimento de terceiros é limitado. A credibilidade
de cada testemunho é sopesada pelo juiz à luz do Cânon 1572.
C) Prova Pericial: Em situações onde a não consumação é
atribuída a impedimentos de ordem física (e.g., vaginismo, impotência antecedente
e perpétua) ou psicológica (e.g., aversão sexual grave, bloqueios), a
expertise de peritos médicos ou psicólogos nomeados pelo Tribunal é essencial
para corroborar as alegações. O Comentário Exegético (Marzoa et al.) certamente
sublinha a importância de tais pareceres para elucidar as causas clínicas da
não consumação.
D) Prova Documental: Registros médicos, laudos de terapias
conjugais focadas em questões de intimidade, ou outras correspondências que
corroborem as alegações podem ser apresentados.
Conclusão
A dispensa do matrimônio não
consumado, seja ele sacramental ou válido com disparidade de culto, é um
instrumento do Direito Canônico que reflete a pastoralidade da Igreja e sua
busca pela verdade. Embora o percurso probatório possa ser árduo devido à intimidade
dos fatos, a precisão normativa, a flexibilidade processual e a exigência de
uma prova consistente permitem ao Tribunal eclesiástico discernir a realidade
do vínculo e, quando cabível, proceder à sua dissolução. Tal instituto não
apenas oferece uma via de libertação para os fiéis, mas também reafirma a
compreensão da Igreja sobre a sacralidade e a natureza do matrimônio em todas
as suas dimensões.