segunda-feira, 28 de julho de 2025

O Vínculo Nupcial não consumado: Uma Análise Canônica da Dispensa Matrimonial

Emanuel de Oliveira Costa Jr. (Advogado canonista e civil, professor, Presidente da UNIJUC – União dos Juristas Católicos de Goiás)

 

 

O matrimônio, no âmbito da Igreja Católica, transcende a mera formalidade legal para se apresentar como uma realidade teológica e jurídica de profunda significação. Este consórcio de toda a vida, ordenado por sua própria índole natural ao bem dos cônjuges e à geração e educação da prole, assume, entre batizados, a excelsa dignidade de sacramento[1]. No entanto, a complexidade da condição humana impõe desafios que o próprio ordenamento canônico se propõe a dirimir, notadamente em face da não consumação do vínculo. O presente artigo debruça-se sobre o instituto da dispensa do matrimônio não consumado, suas bases normativas e os intrincados desafios probatórios, especialmente quando a união envolve a disparidade de culto.

I. A Estrutura Matrimonial Canônica: Entre a Natureza e o Sacramento

A compreensão do matrimônio exige uma perscrutação de suas distintas, porém interligadas, dimensões. Primeiramente, é imperativo reconhecer sua natureza intrínseca como uma instituição de direito natural e divino. Tal prerrogativa significa que as características essenciais da união conjugal – a unidade e a indissolubilidade – e seus fins primordiais – o bem recíproco dos cônjuges e a procriação e educação da prole – são elementos inerentes a qualquer casamento válido, independentemente do estatuto batismal das partes envolvidas. Trata-se de um pacto pelo qual um homem e uma mulher se doam e se acolhem mutuamente em uma comunidade de vida e amor.

A esta fundação natural, soma-se, para os batizados, a elevação do matrimônio à categoria de sacramento[2], conforme preceitua o Cânon 1055, §2, do Código de Direito Canônico de 1983. Este matrimônio, denominado "rato" (ratum), adquire uma indissolubilidade particular se, além de rato, for "consumado" (consummatum), tornando-se um vínculo que "nenhuma autoridade humana pode dissolver" (Cân. 1141). Contudo, a Igreja, em sua solicitude pastoral, também contempla e regulamenta os matrimônios válidos entre batizados e não batizados, os quais, embora careçam da sacramentalidade, constituem um vínculo jurídico-natural legítimo, desde que precedidos da necessária dispensa do impedimento de disparidade de culto (Cân. 1086).

II. A Consumação Matrimonial: Conceituação e Relevância Jurídica

A consumação do matrimônio, elemento fulcral para a compreensão de sua indissolubilidade absoluta, é definida pelo Cânon 1061, §1, como "o ato conjugal, realizado de modo humano, de que o matrimônio é apto por sua própria natureza para a geração da prole, ao qual os cônjuges livremente se dedicaram." Em essência, refere-se à primeira realização do ato sexual completo e penetrativo após a celebração das núpcias, possuindo intrinsecamente a potencialidade procriativa.

A ausência de tal consumação confere ao matrimônio uma peculiaridade jurídica: impede que ele atinja sua plena e absoluta indissolubilidade. É precisamente essa circunstância que fundamenta a possibilidade de sua dissolução por um ato gracioso e soberano da suprema autoridade eclesiástica.

III. A Dispensa Papal: Dissolução do Vínculo Não Consumado (Dispensatio Super Rato)

Diversamente da declaração de nulidade matrimonial, que postula a inexistência do vínculo desde sua origem, a dispensa do matrimônio não consumado pressupõe a pré-existência de um vínculo matrimonial válido que, por não ter sido consumado, é passível de ser dissolvido pela autoridade pontifícia.

O Cânon 1142 consagra essa prerrogativa, estabelecendo que "o matrimônio não consumado, entre batizados ou entre parte batizada e parte não batizada, pode ser dissolvido pelo Romano Pontífice por justa causa, a pedido de ambas as partes ou de uma delas, mesmo que a outra não queira."

Esta dispensa pontifícia abrange, portanto, ambas as modalidades de matrimônio não consumado:

A) O matrimônio rato e não consumado: Aquele em que ambos os cônjuges são batizados, e a união, embora sacramental em sua origem, não foi aperfeiçoada pela comunhão corpórea.

B) O matrimônio válido com disparidade de culto e não consumado: Aquele em que um dos cônjuges é batizado e o outro não. Embora careça da sacramentalidade, é um matrimônio válido sob a lei natural, e sua não consumação também o torna passível da dispensa.

O cerne dessa dispensa não reside na mera "liberação de obrigações naturais". Sua finalidade precípua e seu efeito jurídico direto são a dissolução do próprio vínculo matrimonial. Ao ser concedida, a união que outrora vinculava as partes é desfeita de forma plena e definitiva aos olhos da Igreja, restituindo-lhes a liberdade para contrair novo matrimônio canonicamente válido, caso assim o desejem e as demais condições jurídicas o permitam.

IV. A Extensão da Jurisdição Eclesiástica na Disparidade de Culto

A natureza da jurisdição da Igreja sobre o matrimônio com disparidade de culto é um ponto de notável profundidade conceitual. Embora a parte não batizada não se encontre, por princípio, sujeita às leis meramente eclesiásticas (Cân. 11), a autoridade da Santa Sé para dissolver um matrimônio válido não consumado que a envolva não decorre de uma submissão geral de sua parte ao ordenamento canônico.

Em vez disso, essa prerrogativa advém de um poder especial da Igreja sobre o vínculo matrimonial em si, poder que se entende derivado da instituição divina e do "poder das chaves" confiado a Pedro. O matrimônio, mesmo na disparidade de culto, é reconhecido como uma realidade de direito natural e divino, e suas propriedades essenciais são consideradas de origem transcendente, não meramente positiva.

Desse modo, ao conceder a dispensa, a Igreja atua sobre uma realidade jurídica – o vínculo válido – que, por sua própria natureza, obriga a ambas as partes. A dissolução do vínculo tem o condão de liberar ambas as partes daquela união específica. Para o cônjuge batizado, a consequência é a plena liberdade para contrair novo matrimônio na Igreja. Para o cônjuge não batizado, a dispensa papal significa que, para os fins do ordenamento canônico, seu casamento anterior com o católico é considerado inexistente, removendo assim qualquer impedimento para um futuro matrimônio canônico, caso venha a se casar com outro católico, por exemplo. Não se trata, portanto, de impor leis eclesiásticas a quem a elas não está sujeito, mas de exercer uma prerrogativa divina sobre um vínculo validamente estabelecido que tem implicações para o ordenamento da Igreja.

V. A Prova da Não Consumação: Da Intimidade aos Meios Processuais

A comprovação da não consumação é um dos maiores desafios probatórios, dada a natureza intrínseca e privada do ato conjugal. No entanto, a busca pela verdade material é um imperativo no processo canônico (Cân. 1526 §1), e o sistema jurídico eclesiástico oferece instrumentos para sua elucidação.

O Cânon 1061, §2, estabelece uma presunção crucial: "Depois da celebração do matrimônio, se os cônjuges coabitaram, presume-se a consumação; se o matrimônio foi rato, ou rato e não consumado, é o contrário, permanecendo a prova." Esta presunção iuris tantum (que admite prova em contrário) inverte o ônus da prova: uma vez demonstrada a coabitação, caberá à parte que alega a não consumação prová-la. O Comentário Exegético ao Código de Direito Canônico (Marzoa et al., Vol. III/2, Comentário ao Cân. 1061) destaca que a coabitação funciona como um "indício externo de um ato interno que normalmente ocorre entre cônjuges", visando à celeridade processual.

A prova da não consumação, portanto, é multifacetada:

A) Depoimento das Partes: As declarações dos próprios cônjuges são a principal fonte de prova. O interrogatório deve ser conduzido com prudência, mas com rigor e precisão, indagando sobre os detalhes da vida íntima, os motivos da ausência do ato conjugal (impedimentos físicos, psicológicos, recusas reiteradas) e as tentativas de sua realização. A coerência interna das narrativas e a concordância entre os relatos dos cônjuges são elementos de peso.

B) Prova Testemunhal: Embora indiretas, as testemunhas podem oferecer "provas morais" e circunstanciais. Familiares próximos, amigos ou confidentes podem depor sobre: confissões feitas pelos cônjuges acerca da intimidade, observações sobre a dinâmica da vida conjugal que sugeriam a ausência de coabitação sexual (e.g., dormirem em quartos separados), ou conhecimento de condições de saúde impeditivas. A jurisprudência da Rota Romana, conforme uma Sentença coram Wynen, de 27 de novembro de 1980 (RR, vol. LXXII, p. 770, n. 4), preconiza que, embora os depoimentos de parentes devam ser avaliados "com cautela", não devem ser "sumariamente rejeitados", especialmente quando os fatos se desenrolam no âmbito familiar e o conhecimento de terceiros é limitado. A credibilidade de cada testemunho é sopesada pelo juiz à luz do Cânon 1572.

C) Prova Pericial: Em situações onde a não consumação é atribuída a impedimentos de ordem física (e.g., vaginismo, impotência antecedente e perpétua) ou psicológica (e.g., aversão sexual grave, bloqueios), a expertise de peritos médicos ou psicólogos nomeados pelo Tribunal é essencial para corroborar as alegações. O Comentário Exegético (Marzoa et al.) certamente sublinha a importância de tais pareceres para elucidar as causas clínicas da não consumação.

D) Prova Documental: Registros médicos, laudos de terapias conjugais focadas em questões de intimidade, ou outras correspondências que corroborem as alegações podem ser apresentados.

Conclusão

A dispensa do matrimônio não consumado, seja ele sacramental ou válido com disparidade de culto, é um instrumento do Direito Canônico que reflete a pastoralidade da Igreja e sua busca pela verdade. Embora o percurso probatório possa ser árduo devido à intimidade dos fatos, a precisão normativa, a flexibilidade processual e a exigência de uma prova consistente permitem ao Tribunal eclesiástico discernir a realidade do vínculo e, quando cabível, proceder à sua dissolução. Tal instituto não apenas oferece uma via de libertação para os fiéis, mas também reafirma a compreensão da Igreja sobre a sacralidade e a natureza do matrimônio em todas as suas dimensões.

 



[1] Cânon 1055, §1 do CIC de 1983

[2] Cânon 1055, §2 do CIC de 1983

sexta-feira, 25 de julho de 2025

A Lei Magnitsky e o debate sobre soberania nacional no Brasil.

Recentemente, a discussão sobre a aplicação da Lei Magnitsky a figuras políticas no Brasil, especialmente a um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), gerou um intenso debate público. A resposta de setores do governo, do próprio STF e de parte da classe política e militância tem sido a defesa intransigente da soberania nacional. Mas o que significa, de fato, soberania neste contexto? 

I - O Equívoco do Discurso Soberanista Atual

O uso do termo "soberania nacional" por alguns grupos de direita e esquerda, e a preocupação com um suposto "impacto do globalismo" pelas sanções externas, denota uma compreensão equivocada do conceito. A ideia de que uma lei estrangeira – com suas punições como congelamento de bens ou contas bancárias nos Estados Unidos – "afrontaria a soberania nacional" é um equívoco.

No campo da Ciência Política, soberania refere-se à capacidade de um povo ou de um país de tomar suas próprias decisões cruciais, sem interferência externa. Um país é soberano quando suas escolhas mais importantes são feitas internamente, e não ditadas por forças ou nações estrangeiras.

II - Soberania Não é Ditadura ou Nacionalismo Tacanho

É fundamental desassociar a ideia de soberania de um nacionalismo obsoleto e autoritário, como o "nacionalismo getulista" ou outras vertentes ditatoriais. Getúlio Vargas, ao se tornar soberano em relação ao povo – ou seja, ao concentrar o poder e anular a soberania popular –, exemplifica justamente o que deve ser combatido. Ditadores precisam ser derrubados, e essa derrubada pode e, muitas vezes, deve contar com forças externas, conforme argumentam autores como Gene Sharp.

Getúlio Vargas, em sua ditadura que ele mesmo confirmava ser, era o único soberano. Nem o Estado, nem o povo e suas decisões, nem o parlamento exerciam essa soberania.

O jurista alemão Carl Schmitt, em sua conhecida obra "Legalidade e Legitimidade", cunhou a expressão de que "soberano é aquele que decide sobre a exceção". Um estado de exceção é precisamente o momento em que a soberania das leis e o funcionamento natural das instituições são suspensos. Quando as instituições democráticas se desviam de seu propósito e passam a atuar tiranicamente, a soberania popular é abolida. Schmitt descreve que o verdadeiro soberano é aquele que, mesmo em meio a uma crise institucional brutal, mantém-se de pé e detém o poder de comando, inclusive o poder de polícia do Estado.

 III - O Verdadeiro Soberano e a Lei Magnitsky: Por Que o Discurso de "Não Intromissão" é Frágil

A descrição de Schmitt não é uma defesa de tal poder, mas uma análise de como ele funciona na prática. No Brasil, se as instituições não operam em harmonia e a decisão final recai sobre uma única pessoa, o conceito de soberania popular é, na essência, esvaziado. O verdadeiro soberano pode ser a expressão da vontade popular (como idealizado na Constituição Americana, que preza a liberdade e os freios e contrapesos), ou, lamentavelmente, um tirano que se apropria do poder em um estado de exceção – muitas vezes provocado por ele próprio, como historicamente vimos com Getúlio Vargas e Hitler.

Quando setores da política brasileira, tanto da chamada direita quanto da esquerda, utilizam o termo "soberania" para se opor à Lei Magnitsky, o fazem de forma retórica. Eles não estão, de fato, defendendo a participação popular ou o poder do povo decidir seu próprio destino em relação a políticos, ao mercado financeiro ou a estatais que, por vezes, controlam o país com mão de ferro. Pelo contrário, o discurso parece ter como objetivo principal apenas rejeitar qualquer "intromissão" externa.

Mas é preciso questionar: há condições reais para essa autossuficiência absoluta? Vivemos isolados no mundo? Temos, como nação, poder moral, bélico e diplomático para ignorar por completo a comunidade internacional, justificando a ausência de qualquer "intromissão" em nossas decisões, sejam elas certas ou erradas? A resposta é clara: não. Nenhum país é uma ilha, e o Brasil, como parte da comunidade global, interage em diversas frentes. A negação de uma possível intervenção externa – especialmente quando se trata de violações de direitos humanos ou corrupção – ignora a realidade das relações internacionais e a interdependência dos Estados.

A realidade brasileira demonstra que, muitas vezes, a voz do povo é silenciada. Suas decisões e sua voz são frequentemente censuradas, controladas e ignoradas por quem detém o poder em um estado de exceção, onde uma única pessoa ou grupo decide de forma autocrática.

Portanto, a Lei Magnitsky, ao permitir sanções a indivíduos que violam direitos humanos ou cometem atos de corrupção, não "afronta" a verdadeira soberania de um povo oprimido. Pelo contrário, ela pode ser uma ferramenta externa essencial para desestabilizar regimes tirânicos e fortalecer a legitimidade e a capacidade de um povo exercer sua própria soberania. É um fato histórico que tiranos caem tanto por forças internas quanto por forças externas. Ao permitir que a comunidade internacional atue contra abusos sistêmicos, a Lei Magnitsky, de forma crucial, pode paradoxalmente aumentar a soberania popular, oferecendo um caminho para que o povo retome o controle de seu próprio destino.

 

A Certeza Moral no Julgamento Eclesiástico: Um Pilar da Justiça Canônica e suas Ressonâncias no Direito Secular

 Emanuel de Oliveira Costa Jr. (Advogado canonista e civil, professor, Presidente da UNIJUC – União dos Juristas Católicos de Goiás)

 

 

Em qualquer sistema jurídico, a integridade da decisão judicial repousa sobre a solidez da convicção do magistrado. No Direito Canônico, especialmente nas causas matrimoniais, fala-se frequentemente em "certeza moral" como o patamar probatório a ser alcançado pelo juiz. Longe de ser um critério subjetivo ou um mero arbítrio, essa certeza representa uma convicção robusta e racionalmente fundamentada, essencial para a declaração de um fato ou a imposição de uma obrigação. A compreensão de seus contornos é vital para assegurar que a justiça eclesiástica se fundamente em princípios de equidade e veracidade, compartilhando, inclusive, fundamentos com a formação do juízo em sistemas jurídicos seculares.

I. A Natureza da Certeza Moral no Ordenamento Canônico

A certeza moral, no contexto do Direito Canônico, não se confunde com a certeza matemática ou física, que exige a exclusão de qualquer possibilidade de erro. Em matérias que envolvem a complexidade da intenção humana, da vida íntima ou de fatos pretéritos, como as causas de nulidade matrimonial ou as dispensas por não consumação, tal grau de certeza seria inatingível. A certeza moral, portanto, é uma convicção prudencial, que se forma quando, após uma análise diligente de todas as provas e argumentos, o juiz alcança um estado de espírito no qual a dúvida razoável foi dissipada.

Esse conceito está intrinsecamente ligado ao princípio da busca da verdade, que permeia o processo canônico. O Cânon 1526, §1, do Código de Direito Canônico de 1983, prescreve que o juiz "deve procurar por todos os meios que lhes parecem idôneos a verdade, mesmo sobre fatos que não foram alegados pelas partes". Não se busca uma "verdade formal" – aquela que emerge meramente da correta aplicação das regras processuais, mas que pode não corresponder à realidade material –, mas sim a verdade substancial dos fatos, a fim de proferir uma decisão justa.

II. Os Critérios de Valoração da Prova e a Construção da Certeza Moral

A formação da certeza moral do juiz não é um processo intuitivo, mas um exercício de racionalidade jurídica pautado em critérios objetivos de valoração da prova. O Cânon 1572, ao tratar da força probatória do testemunho, oferece um guia que se estende, por analogia, à avaliação de todas as provas nos autos: "A força probatória do testemunho deve ser avaliada pelo juiz, considerando todas as circunstâncias, principalmente a honestidade do depoente e as outras pessoas de quem pode ter havido conhecimento."

Dentre os critérios que conduzem à formação da certeza moral, destacam-se:

A) Concordância e Convergência das Provas: A força probatória de um conjunto de evidências aumenta exponencialmente quando diversos elementos probatórios, mesmo de naturezas distintas (depoimentos das partes, testemunhos, laudos periciais, documentos), apontam coerentemente para a mesma conclusão. A convergência de indícios, mesmo que isoladamente não constituam prova plena, pode, em seu conjunto, edificar uma convicção robusta.

B) Coerência Interna e Externa: Cada peça probatória, especialmente os depoimentos, deve apresentar uma lógica interna, livre de contradições manifestas. Além disso, as provas devem ser coerentes com os fatos notórios, com as leis naturais e com outras evidências consideradas verídicas nos autos. Descrenças sobre a capacidade de uma testemunha ter conhecimento de um fato, por exemplo, ou inconsistências factuais em um relato, minam sua credibilidade.

C) Credibilidade das Fontes: O juiz avalia a idoneidade moral e intelectual daqueles que produzem a prova. Fatores como a honestidade do depoente, a ausência de interesse indevido na causa (animus nocendi ou lucrandi), a capacidade de percepção e rememoração dos fatos, e a ausência de motivos para deturpar a verdade são cruciais. No que tange aos parentes como testemunhas, sua admissibilidade é reconhecida (Cân. 1550, §2), mas sua credibilidade é ponderada com especial cautela. A jurisprudência da Rota Romana tem sido clara, como na Sentença coram Wynen, de 27 de novembro de 1980 (RR, vol. LXXII, p. 770, n. 4), ao afirmar que "embora os parentes das partes devam ser ouvidos com cautela, seus depoimentos não devem ser sumariamente rejeitados, especialmente quando se trata de fatos que se desenrolam no âmbito familiar e dos quais dificilmente outras pessoas teriam conhecimento."

D) A Refutação de Presunções Legais: O Direito Canônico estabelece presunções que auxiliam na prova. O Cânon 1061, §2, por exemplo, presume a consumação do matrimônio se os cônjuges coabitaram. Essa é uma presunção iuris tantum, ou seja, admite prova em contrário. A formação da certeza moral pela não consumação, neste caso, exige que a parte interessada apresente provas suficientes para refutar eficazmente essa presunção legal, demonstrando a ausência do ato conjugal.

A persuasão do juiz deve ser um ato racional, ancorado nas provas apresentadas, e não uma mera manifestação de sua subjetividade.

III. A Motivação da Sentença: O Freio ao Arbítrio Judicial

A garantia mais robusta contra o arbítrio na formação da certeza moral reside na exigência de que a sentença seja motivada. O Cânon 1608, §3, impõe ao juiz o dever de "expor os motivos, tanto de direito como de fato, em que se funda a parte dispositiva da sentença".

Essa exigência implica que o juiz não apenas declare sua conclusão, mas demonstre o percurso lógico-jurídico que o levou a ela. Deve-se indicar quais provas foram acolhidas e por quê, como foram valoradas, e, se for o caso, por que outras provas foram descartadas ou consideradas insuficientes. Essa fundamentação exaustiva é a baliza que distingue a certeza moral de uma opinião pessoal. Ela permite que a decisão seja compreendida, verificada e, se necessário, revista por instâncias superiores em caso de recurso, assegurando a transparência e a responsabilidade judicial.

IV. A Certeza Moral no Direito Civil: Uma Analogia Essencial

A formação de uma convicção judicial baseada na razoabilidade e na prova dos autos, distinguindo-se de uma certeza absoluta ou do arbítrio, não é exclusividade do Direito Canônico. Diversos sistemas de Direito Civil, influenciados por princípios iluministas e pela superação da "prova tarifada" (onde o valor da prova era predeterminado por lei), adotam o princípio do livre convencimento motivado do juiz (ou similar).

No Brasil, por exemplo, o Código de Processo Civil de 2015 estabelece que "o juiz apreciará a prova constante dos autos, independentemente do sujeito que a tiver produzido, e indicará na decisão as razões da formação de seu convencimento" (Art. 371, CPC de 2015). Este "livre convencimento" não significa liberdade para decidir sem provas ou contra as provas, mas sim a liberdade de valorar a prova de forma crítica e fundamentada, sem estar atrelado a regras pré-definidas para cada tipo de evidência. A convicção do juiz, em processos civis, também deve ser uma certeza moral, construída sobre o conjunto probatório e expressa na motivação da sentença.

Analogias podem ser traçadas em áreas como o Direito Penal, onde a convicção sobre a autoria e a materialidade de um crime, especialmente o dolo (intenção), é frequentemente uma questão de certeza moral, baseada em indícios e provas circunstanciais, e não em provas diretas e absolutas da mente do réu. No Direito de Família civil, a prova de elementos subjetivos como a "afetividade" ou a "intenção" também depende da capacidade do juiz de formar uma convicção razoável a partir de comportamentos e relatos.

Conclusão

A certeza moral no julgamento canônico, portanto, é um conceito de elevado rigor jurídico. Longe de ser uma prerrogativa arbitrária do juiz, ela é a culminância de um processo metódico de busca da verdade, valoração criteriosa das provas e justificação racional da decisão. Essa abordagem, que busca uma convicção razoável e fundamentada onde a certeza absoluta é inatingível, encontra paralelos nos mais diversos ordenamentos jurídicos seculares, reafirmando o caráter universal dos princípios que regem a formação do juízo judicial em prol da justiça.

 

quarta-feira, 23 de julho de 2025

A dissolução do vínculo matrimonial não consumado: Aspectos canônicos e jurisprudenciais.

 

Por Emanuel de Oliveira Costa Jr. (Advogado, professor, Presidente da UNIJUC – União dos Juristas Católicos de Goiás)

 

O matrimônio na Igreja Católica é uma instituição de profunda relevância teológica e jurídica. Compreendido como um sacramento entre batizados, ou como um contrato válido de direito natural e divino para os não batizados, o vínculo conjugal possui características de unidade e indissolubilidade. Contudo, em determinadas circunstâncias, o próprio Direito Canônico prevê a possibilidade de sua dissolução, destacando-se, nesse contexto, a dispensa do matrimônio não consumado. Este artigo busca explorar a natureza dessa dispensa, suas implicações jurídicas e as nuances conceituais que a cercam, especialmente no que tange aos casamentos com disparidade de culto.

I. O Matrimônio no Ordenamento Canônico: Vínculo e Sacramento

A Igreja Católica define o matrimônio pelo Cânon 1055, §1, como "o pacto matrimonial, pelo qual o homem e a mulher constituem entre si o consórcio de toda a vida, ordenado por sua própria índole natural ao bem dos cônjuges e à geração e educação da prole, entre batizados foi elevado por Cristo Senhor à dignidade de sacramento."

Essa definição revela duas dimensões cruciais:

1.      Dimensão Natural: O matrimônio é, em sua essência, uma realidade de direito natural e divino, fundado na própria natureza humana e instituído por Deus. Isso significa que suas propriedades essenciais (unidade e indissolubilidade) e seus fins são inerentes a qualquer união conjugal válida, independentemente da fé dos contraentes. É um pacto pelo qual o homem e a mulher se entregam e se aceitam mutuamente.

2.      Dimensão Sacramental: Para que o matrimônio seja elevado à dignidade de sacramento, é indispensável que ambos os contraentes sejam batizados (Cân. 1055, §2). Um matrimônio entre dois batizados é, por definição, um sacramento, sendo chamado de "matrimônio rato" (matrimonium ratum). Se esse matrimônio sacramental for consumado, ele se torna "rato e consumado" (ratum et consummatum), adquirindo uma indissolubilidade absoluta, que "nenhuma autoridade humana pode dissolver" (Cân. 1141).

Ainda que o foco principal da atenção canônica recaia sobre o matrimônio sacramental, a Igreja reconhece e regulamenta os casamentos válidos entre batizados e não batizados, desde que obtida a necessária dispensa do impedimento de disparidade de culto (Cân. 1086). Tais uniões, embora válidas e geradoras de um vínculo legítimo, não são consideradas sacramentos.

II. A Não Consumação: Conceito e Consequências Jurídicas

A consumação do matrimônio é um ato de singular importância para o Direito Canônico. O Cânon 1061, §1, esclarece que a consumação se dá "pelo ato conjugal, realizado de modo humano, de que o matrimônio é apto por sua própria natureza para a geração da prole, ao qual os cônjuges livremente se dedicaram". Em termos práticos, refere-se à primeira realização do ato sexual completo e penetrativo após a celebração do casamento, que por si mesmo seja apto à geração da prole.

A não consumação impede que um matrimônio rato e válido se torne absolutamente indissolúvel. É justamente essa ausência de consumação que abre a porta para a possibilidade de sua dissolução, por um ato de graça pontifícia.

III. A Dispensa do Matrimônio Não Consumado (Dispensatio Super Rato)

Ao contrário da declaração de nulidade matrimonial, que reconhece que o vínculo nunca existiu validamente desde o início, a dispensa do matrimônio não consumado pressupõe a existência de um vínculo matrimonial válido que, por não ter sido consumado, pode ser dissolvido pela autoridade suprema da Igreja.

O Cânon 1142 expressa essa prerrogativa: "O matrimônio não consumado, entre batizados ou entre parte batizada e parte não batizada, pode ser dissolvido pelo Romano Pontífice por justa causa, a pedido de ambas as partes ou de uma delas, mesmo que a outra não queira."

É crucial notar que essa dispensa aplica-se a:

  • Matrimônio rato e não consumado: Onde ambos são batizados, e o casamento é sacramental. A dissolução do vínculo sacramental não consumado é uma prerrogativa única do Papa.
  • Matrimônio válido com disparidade de culto e não consumado: Onde um é batizado e o outro não. Apesar de não ser sacramental, este matrimônio é válido, e a não consumação também abre a possibilidade da dispensa.

O objeto da dispensa não são meramente as "obrigações naturais" do casamento. Ao contrário, a dispensa visa e efetivamente dissolve o vínculo matrimonial em si. Isso significa que a união existente entre as duas pessoas é desfeita de forma plena e definitiva para a Igreja, permitindo que as partes contraiam um novo matrimônio canonicamente válido, caso assim desejem e as demais condições sejam atendidas.

IV. A Questão da Jurisdição em Casos de Disparidade de Culto

A discussão sobre a aplicabilidade da dispensa do vínculo a uma parte não batizada é de grande acuidade conceitual. A objeção de que a parte não batizada não está sujeita às leis meramente eclesiásticas da Igreja é, em princípio, correta (Cân. 11). No entanto, a capacidade da Santa Sé de dissolver um matrimônio válido não consumado que envolve uma parte não batizada não se baseia na submissão geral do não batizado a todas as leis canônicas.

Pelo contrário, essa autoridade deriva de um poder específico sobre o vínculo matrimonial em si, que a Igreja entende ter por instituição divina. O matrimônio, mesmo na disparidade de culto, é visto como uma instituição de direito natural e divino, e as propriedades essenciais deste vínculo (unidade e indissolubilidade) são consideradas de origem divina e natural, não meramente eclesiástica.

Assim, quando o Romano Pontífice concede a dispensa, ele age sobre uma realidade jurídica (o vínculo válido) que, por sua própria natureza, afeta ambas as partes. A dissolução do vínculo, para a Igreja, tem o efeito de liberar ambas as partes daquela união específica. Para a parte batizada, isso significa a plena liberdade para um novo matrimônio canônico. Para a parte não batizada, embora não esteja sujeita às demais leis eclesiásticas, a dispensa papal significa que, do ponto de vista da Igreja, seu casamento anterior com o católico não mais existe, o que teria implicações caso ela quisesse, no futuro, casar-se com outro católico, por exemplo. Não se trata de impor uma lei eclesiástica sobre o não batizado, mas de exercer uma prerrogativa divina sobre um vínculo válido que foi estabelecido e que envolve um fiel da Igreja. A dissolução é um ato que atinge a própria raiz da união, eliminando-a para todos os efeitos canônicos.

V. A Prova da Não Consumação: Desafios e Meios Processuais

A prova da não consumação é um dos aspectos mais delicados do processo de dispensa, dada a natureza íntima do ato conjugal. A busca da verdade, contudo, é um princípio basilar do Direito Canônico (Cân. 1526 §1), e o ordenamento prevê meios para essa apuração.

A. Depoimento das Partes

Os depoimentos da parte demandante e demandada são a base da prova. O juiz ou instrutor deve conduzir o interrogatório com a máxima discrição e sensibilidade, mas com a profundidade necessária para apurar os fatos. Perguntas específicas sobre a vida íntima, as razões para a não consumação (seja por impedimento físico, psicológico, recusa ou outros motivos), as tentativas realizadas e as reações de cada cônjuge são essenciais. A coerência interna dos relatos e a consistência entre os depoimentos de ambos os cônjuges são fatores-chave para a credibilidade.

B. Prova Testemunhal

Embora a intimidade da relação conjugal limite o conhecimento direto de terceiros, as testemunhas podem fornecer "provas morais" ou circunstanciais da não consumação. Familiares próximos, amigos íntimos ou confidentes podem depor sobre:

  • Confidências diretas de uma das partes acerca da ausência de relações ou dificuldades na intimidade.
  • Comportamentos observados no casal que sugeriam falta de intimidade (dormir em quartos separados, ausência de afeto público, queixas sobre a vida conjugal).
  • Conhecimento de problemas de saúde (físicos ou psicológicos) que pudessem impedir a consumação.
  • Admissibilidade de Parentes: É importante ressaltar que o Direito Canônico não exclui os parentes de depor (Cân. 1550 §2). A jurisprudência da Rota Romana tem reiteradamente afirmado que, embora seus depoimentos devam ser avaliados com cautela, eles não devem ser sumariamente rejeitados, especialmente em matérias que se desenrolam no âmbito familiar e das quais poucos outros teriam conhecimento. Como se lê em uma Sentença Rotalis coram Wynen, de 27 de novembro de 1980 (RR, vol. LXXII, p. 770, n. 4): "Embora os parentes das partes devam ser ouvidos com cautela, seus depoimentos não devem ser sumariamente rejeitados, especialmente quando se trata de fatos que se desenrolam no âmbito familiar e dos quais dificilmente outras pessoas teriam conhecimento." A força probatória é avaliada pelo juiz, considerando todas as circunstâncias (Cân. 1572).

C. Prova Pericial

Em casos onde a não consumação é atribuída a um impedimento físico (ex: vaginismo, anomalias físicas) ou psicológico (ex: aversão sexual grave, bloqueios), a perícia médica ou psicológica (realizada por peritos nomeados pelo Tribunal) pode ser fundamental para corroborar as alegações das partes e das testemunhas.

D. Prova Documental

Registros médicos, laudos de terapia de casais ou aconselhamento conjugal focados em disfunções sexuais ou ausência de intimidade, e até mesmo correspondências ou mensagens (com a devida cautela em relação à autenticidade e contextualização) podem ser anexados para reforçar a prova da não consumação.

VI. Conclusão

A dispensa do matrimônio não consumado, seja ele sacramental ou válido com disparidade de culto, é um instrumento do Direito Canônico que reflete a pastoralidade da Igreja e sua busca pela verdade e pelo bem das almas. Embora a prova da não consumação seja um desafio intrínseco à sua natureza íntima, o processo canônico oferece um arcabouço sólido de meios probatórios, que, quando avaliados com diligência e prudência pelo Tribunal, permitem alcançar a certeza moral necessária para a dissolução do vínculo. Compreender as distinções conceituais entre sacramento, vínculo válido de direito natural e divino, e a jurisdição da Igreja sobre esses elementos é essencial para a correta aplicação e interpretação dessa importante figura do Direito Matrimonial Canônico.

 

segunda-feira, 16 de junho de 2025

O direito natural apagado do imaginário jurídico afeta a assistência religiosa.

Fazer um resgate psicológico para chegar novamente ao conceito de direito natural no imaginário das pessoas e principalmente dos juristas, é algo que parece cada vez mais distante. Ao que parece estamos em uma era de pós-positivismo o que só complica esse tipo de tentativa.

O pós-positivismo pode até ser visto como um avanço no sentido de resgatar valores e princípios que o positivismo estrito havia, de certa forma, relegado. No entanto, observa-se que o resgate do direito natural no imaginário dos juristas e da população parece cada vez mais distante. Isso aponta para o cerne da dificuldade em resolver questões como a assistência religiosa em hospitais e presídios.

 

1) O Desafio do Resgate do Direito Natural na Era Pós-Positivista 

A era pós-positivista, embora reconheça a importância dos princípios e dos valores na interpretação e aplicação do direito, muitas vezes ainda opera dentro de uma lógica que prioriza a norma posta como ponto de partida.

A busca por um fundamento axiológico, moral ou ético para a lei é presente, mas a linguagem do direito natural, com sua conotação jusnaturalista histórica, pode soar distante ou mesmo "não-científica" para uma parcela significativa da comunidade jurídica.

A secularização da sociedade e o pluralismo de valores também contribuem para a dificuldade de um consenso sobre o que constituiria um "direito natural" universalmente aceito. Se o direito natural remete a uma ordem superior ou a princípios inerentes à razão humana, a diversidade de interpretações sobre essa ordem ou sobre a própria razão pode dificultar sua aceitação como um fundamento inequívoco para a prática jurídica cotidiana.

Assim, o problema não é a ausência de um direito natural, mas a percepção e a aplicação prática desse conceito no dia a dia. Para muitos operadores do direito, mesmo pós-positivistas, o caminho mais cômodo e seguro é o da interpretação da norma positivada, ainda que buscando nela princípios implícitos ou valores constitucionais. Isso, por vezes, leva a uma "acomodação" onde a essência do direito fica submetida à forma de sua positivação.

 

2) Como a Assistência Religiosa se Encaixa Nesse Cenário 

No caso da assistência religiosa em hospitais, a situação é um exemplo emblemático dessa tensão.

O direito é claramente positivado na Constituição (art. 5º, VI), em leis federais (Lei nº 9.982/2000) e até em portarias (Portaria de Consolidação nº 1/2017 do Ministério da Saúde). A questão não é a falta de norma, mas a compreensão e a efetivação dessa norma em sua plenitude, considerando a urgência e a profundidade da necessidade que ela visa atender.

A burocracia e a rigidez na aplicação de regras sobre horários de visita para assistentes religiosos não são resultado de uma falha legislativa em si, mas de uma interpretação que não consegue ir além do texto para abraçar o espírito do direito. O desafio, portanto, reside em como traduzir a importância inegável desse direito – que é natural em sua concepção, fundamental em sua constitucionalização e essencial em sua prática – para uma linguagem que ressoe com a lógica operacional e jurídica predominante.

Talvez o caminho não seja tentar um "resgate psicológico" do direito natural em seu sentido mais clássico, mas sim fortalecer a interpretação humanizadora e principiológica dentro do próprio pós-positivismo. Isso implica enfatizar que a dignidade da pessoa humana e a liberdade de crença, embora positivadas, possuem uma carga axiológica tão poderosa que devem prevalecer sobre formalismos que as esvaziem de conteúdo. Argumentar que a rigidez burocrática leva a uma violação inconstitucional do direito fundamental e a um sofrimento desnecessário pode ser mais eficaz do que uma discussão puramente filosófica sobre o direito natural.

 

3) O Estado não concede um direito que é natural. Deve garantir seu exercício 

Entender que o direito à assistência religiosa em hospitais não é só um mero direito que o Estado em toda a sua amplitude concedeu para as pessoas, ou seja, para os seus súditos é algo essencial. Mas, que parece estar muito longe do que precisamos. Devido ao positivismo extremo as pessoas tendem a acreditar que o Estado está acima de tudo e de todos e que não existe nada que possa delimitá-lo. Entretanto o direito natural é um desses delimitadores.

Essa percepção de que o Estado e o direito positivado são a instância máxima, sem limites intrínsecos, é de fato um entrave à efetividade de direitos que, em sua essência, precedem a própria norma estatal.

 

4) O Desafio da Soberania Estatal e o Esquecimento do Direito Natural 

É fundamental entender que o direito à assistência religiosa não é uma "concessão" graciosa do Estado aos seus "súditos". Pelo contrário, trata-se de um direito inerente à condição humana, que o Estado tem o dever de reconhecer, proteger e garantir. Essa distinção é vital. Se o direito é visto como algo meramente "concedido", o Estado sente-se no direito de regulá-lo, limitá-lo e até mesmo suspendê-lo conforme sua conveniência ou sua interpretação burocrática, sem se submeter a um limite superior.

Essa visão deriva, em grande parte, de uma leitura extrema do positivismo jurídico, onde a lei válida é aquela posta pelo poder soberano do Estado, e não há autoridade superior que possa contestá-la ou delimitá-la. Nesse cenário, a Constituição se torna o ápice da pirâmide normativa, mas seu conteúdo pode ser interpretado de forma literal e restritiva, esvaziando a força de princípios que, embora positivados, têm uma raiz mais profunda.

Entretanto, o direito natural surge precisamente como um desses delimitadores inalienáveis do poder estatal. Ele argumenta que existem valores, princípios e direitos que são inerentes à natureza humana e à justiça, válidos universalmente e independentemente de serem escritos em leis. A liberdade de consciência, a dignidade, a busca por amparo espiritual – esses são direitos que, para os jusnaturalistas, não são criados pelo Estado, mas apenas por ele reconhecidos e protegidos. O Estado, portanto, não está "acima de tudo e de todos"; ele está limitado por esses direitos preexistentes.

 

5) A Consequência: Burocracia versus Dignidade 

A desconsideração ou o "esquecimento" do direito natural no imaginário jurídico e social é o que gera as "brechas legalistas" e os problemas burocráticos. Quando a assistência religiosa é tratada como um mero item de "serviço" regulado por portarias, sujeita a horários rígidos e à conveniência administrativa, ignora-se sua dimensão existencial e a urgência que ela representa para o paciente em seu momento de fragilidade máxima.

A burocracia, nesse contexto, deixa de ser uma ferramenta de organização para se tornar uma barreira à efetivação de um direito fundamental. A prioridade da "rotina hospitalar" sobre a necessidade de um último sacramento ou de uma oração de conforto em face da morte iminente não é uma falha operacional; é uma falha conceitual, um reflexo da incapacidade de reconhecer que certos direitos não podem ser subjugados à conveniência administrativa, pois sua violação atinge a própria essência da dignidade humana.

Resgatar a percepção do direito natural como um limite intrínseco ao poder do Estado e um fundamento para a interpretação de todas as leis é, sim, um desafio complexo na era pós-positivista. Contudo, é um passo essencial para garantir que a justiça e a humanidade prevaleçam sobre a mera formalidade legal, especialmente em contextos tão sensíveis como a saúde e a vida.

segunda-feira, 9 de junho de 2025

Assistência religiosa em hospitais negada. O que fazer, quem pode fazer, quando e onde.


No complexo ambiente hospitalar, onde a ciência médica se entrelaça com a vulnerabilidade humana, o direito à assistência religiosa transcende a mera formalidade legal, consolidando-se como uma prerrogativa essencial da dignidade da pessoa humana e da liberdade de crença, ambos direitos naturais e constitucionais.

No Brasil, a ausência de clareza nas normativas pode transformar essa prerrogativa fundamental em uma fonte de insegurança jurídica, intensificando o sofrimento psíquico e espiritual do paciente e de seus familiares. Não raro, a rigidez burocrática impede que a fé, tão vital em momentos de crise, cumpra seu papel de amparo e consolo.

 

Quem Pode Agir e Por Quê?

Quando o direito à assistência religiosa é negado ou mitigado em ambiente hospitalar, tanto o enfermo e sua família quanto o assistente religioso têm legitimidade para agir.

  • O direito à assistência religiosa é, primariamente, um direito fundamental do paciente (ou de sua vontade presumida, expressa pela família em caso de impossibilidade). A eles, a violação impacta diretamente a liberdade de crença (art. 5º, VI, da Constituição Federal de 1988), a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da Constituição Federal de 1988) e o direito à assistência espiritual, que são bens jurídicos personalíssimos. A negativa pode causar um sofrimento psíquico e moral incalculável, especialmente em face da terminalidade.
  • O assistente religioso, por sua vez, age em representação de sua fé e em cumprimento de sua missão. A negativa de acesso viola o direito de exercer o ministério religioso em conformidade com a lei, além de frustrar o direito do fiel de receber o suporte. A violação aqui recai sobre a liberdade de exercício de culto e a garantia do direito de acesso, conforme previsto na legislação específica sobre assistência religiosa.

 

Quais Vias de Ação Podem Ser Tomadas?

Não existe um único caminho, e a escolha dependerá da urgência da situação e da gravidade da negativa à assistência.

1.      Diálogo Imediato com a Instituição Hospitalar:

o    Com quem falar: Tentar conversar com a equipe de enfermagem, o médico responsável ou, idealmente, a direção da unidade hospitalar ou a ouvidoria do hospital. É a via mais rápida para resolver uma situação pontual e urgente.

o    O que argumentar: Reforçar a previsão legal do direito à assistência religiosa, mencionando expressamente a Lei Federal nº 9.982, de 14 de julho de 2000, que "Dispõe sobre a prestação de assistência religiosa nas entidades hospitalares públicas e privadas, bem como nos estabelecimentos prisionais civis e militares" (art. 1º), e a Portaria de Consolidação nº 1, de 28 de setembro de 2017, do Ministério da Saúde, que garante o "recebimento de visita de religiosos de qualquer credo" (Art. 4º, Parágrafo Único, XIV). Deve-se, também, salientar a necessidade do paciente, especialmente se a situação for de urgência ou fim de vida, onde a restrição poderia configurar lesão à dignidade.

2.      Denúncia Formal aos Órgãos de Controle e Fiscalização:

o    Ministério Público: O Ministério Público, em suas esferas estadual e federal (MPF), tem o papel de defensor da ordem jurídica e dos direitos sociais e individuais indisponíveis (art. 127 da Constituição Federal). Denúncias de violação à assistência religiosa podem ser encaminhadas a promotorias ou procuradorias de Justiça especializadas em Direitos Humanos ou Defesa da Saúde, com base na violação do direito à liberdade de religião.

o    Secretarias de Saúde: As Secretarias de Saúde (Municipal e Estadual) são responsáveis pela fiscalização das unidades de saúde sob sua jurisdição (art. 198 da Constituição Federal). Uma denúncia formal à Ouvidoria da Secretaria pode gerar uma investigação e, se for o caso, a aplicação de medidas administrativas.

o    Conselhos Profissionais: Conselhos Regionais de Medicina (CRM) e de Enfermagem (Coren) podem ser acionados para avaliar se houve alguma conduta antiética por parte de profissionais de saúde que, por ação ou omissão, impediram o exercício de um direito legalmente garantido (códigos de ética das respectivas profissões).

o    Disque 100: O Disque Direitos Humanos, coordenado pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, é um canal nacional para denúncias de violações de direitos humanos, incluindo discriminação e violações de liberdade religiosa (Lei nº 12.527/2011 - Lei de Acesso à Informação, que visa a transparência e defesa de direitos).

3.      Registro de Boletim de Ocorrência (B.O.):

o    Quando fazer: Embora não haja um crime específico de "negativa de assistência religiosa", a situação pode, em tese, configurar outros tipos de crimes, como abuso de autoridade (Lei nº 13.869/2019, se a conduta for de um agente público sem respaldo legal e com finalidade específica de prejudicar ou beneficiar) ou constrangimento ilegal (art. 146 do Código Penal, se alguém for privado de sua liberdade ou do exercício de um direito mediante violência ou grave ameaça), dependendo das circunstâncias concretas. O BO serve como um registro oficial do fato e pode ser o primeiro passo para uma investigação criminal.

o    Direitos Violados no B.O.: O B.O. documentará a violação da liberdade de crença e da dignidade do paciente, o que pode ser enquadrado nas previsões constitucionais (art. 5º, VI) e nas leis específicas que garantem esse direito.

4.      Ação Judicial:

o    Em casos mais graves ou de reincidência, ou quando as vias administrativas não surtem efeito, pode ser cabível uma ação judicial, seja para garantir o acesso imediato (como um mandado de segurança, previsto no art. 5º, LXIX, da Constituição Federal, para proteger direito líquido e certo não amparado por habeas corpus ou habeas data, ou uma ação com pedido de tutela de urgência/liminar, conforme art. 300 do Código de Processo Civil), ou para buscar reparação por danos morais (art. 5º, X, da Constituição Federal, e art. 186 do Código Civil).

 

A Perspectiva do "Porquê"

Independentemente de quem tome a iniciativa, a essência do problema reside na colisão entre o direito fundamental do indivíduo de buscar conforto espiritual e a rigidez administrativa das instituições. A efetividade do direito à assistência religiosa em momentos cruciais não deveria depender da força argumentativa de um assistente religioso ou da determinação de uma família em lutar por um direito que já lhes é garantido pela Constituição Federal e por leis específicas. A humanização do cuidado e a interpretação constitucional das normas impõem que os hospitais atuem proativamente para facilitar o acesso, reconhecendo a urgência da fé que, para muitos, é tão vital quanto a urgência médica.

A ausência de clareza nas normativas que prevejam a flexibilização do acesso para assistentes religiosos em situações de urgência e terminalidade continua sendo um desafio a ser superado para a plena efetivação dos direitos fundamentais.

sexta-feira, 6 de junho de 2025

Assistência religiosa e as “brechas legalistas” para impedir um direito constitucional.

Quando um indivíduo se encontra na fragilidade do leito hospitalar, o direito à assistência religiosa emerge como um pilar essencial da dignidade da pessoa humana. No entanto, a ausência de clareza nas normativas pode transformar essa prerrogativa fundamental em uma fonte de insegurança jurídica, intensificando o sofrimento psíquico e espiritual do paciente e de seus familiares. Não raro, a rigidez burocrática impede que a fé, tão vital em momentos de crise, cumpra seu papel de amparo e consolo.

1) A Essência do Direito e Sua Fundamentação Normativa

A garantia da assistência religiosa em ambientes de saúde não se restringe a uma mera liberalidade institucional; ela encontra seu alicerce em múltiplos níveis do ordenamento jurídico brasileiro. Em sua tessitura mais elevada, a Constituição Federal de 1988 eleva a liberdade de crença a um patamar de direito fundamental e cláusula pétrea, irradiando seus efeitos protetivos para todas as esferas da vida civil e, notadamente, para o contexto de reclusão ou de internação hospitalar. Em conformidade com esse preceito magno, a Lei Federal nº 9.982, de 14 de julho de 2000, dispõe especificamente sobre a prestação de assistência religiosa em entidades hospitalares, tanto públicas quanto privadas, e em estabelecimentos prisionais, civis e militares. Adicionalmente, em um nível de regulamentação administrativa do Sistema Único de Saúde (SUS), a Portaria de Consolidação nº 1, de 28 de setembro de 2017, do Ministério da Saúde, ao consolidar normas sobre os direitos e deveres dos usuários da saúde, reforça explicitamente o direito ao "recebimento de visita de religiosos de qualquer credo". Embora essa Portaria condicione tal direito a que "não acarrete mudança da rotina de tratamento e do estabelecimento e ameaça à segurança ou perturbações a si ou aos outros" (Art. 4º, Parágrafo Único, XIV), a interpretação dessa condição deve ser sempre teleológica, buscando preservar a finalidade do direito fundamental, e não sua restrição desmedida.

2) As Consequências das "Brechas Legalistas": Violação e Angústia Injustificadas

É precisamente na lacuna operacional entre o direito fundamental assegurado pela lei e a ausência de diretrizes administrativas claras para sua efetivação que emergem as "brechas legalistas". Essas não são meras imperfeições técnicas; elas representam pontos de fragilidade que podem levar à violação do direito e à imposição de sofrimento adicional a pacientes e familiares em momentos de extrema vulnerabilidade.

Quando as normativas deixam a critério exclusivo da unidade hospitalar a definição de horários e condições de acesso para assistentes religiosos, sem contemplar a urgência da fé, abre-se espaço para interpretações restritivas que desconsideram a natureza imprevisível da doença e da morte. Em um cenário onde a vida e a morte não seguem agendas pré-estabelecidas, a imposição de horários rígidos para a entrada de assistentes religiosos, desprovida de flexibilidade para casos de urgência ou terminalidade, pode configurar um impedimento efetivo e inconstitucional do direito.

Tal restrição acarreta consequências graves: primeiro, uma violação da dignidade humana, pois nega-se o amparo espiritual no momento de maior necessidade, desrespeitando a totalidade do ser humano, que compreende dimensões físicas, psicológicas e espirituais. Segundo, um aumento do sofrimento psíquico e espiritual, pois para muitos pacientes e suas famílias, a impossibilidade de receber os últimos sacramentos, orações ou o conforto de sua fé em momentos críticos pode gerar profunda angústia, desespero e a sensação de que um direito essencial para sua concepção de salvação ou transição espiritual está sendo negado. Por fim, uma insegurança jurídica para o cidadão, visto que a ausência de clareza gera incerteza quanto à efetivação de um direito fundamental, deixando o paciente e sua família à mercê de interpretações variáveis e, por vezes, discricionárias das normas internas hospitalares.

A efetividade do direito à assistência religiosa demanda, portanto, que as normativas administrativas transcendam o mero formalismo e incorporem a sensibilidade necessária para garantir que a urgência da fé seja reconhecida e atendida. Somente assim o apoio espiritual será sempre acessível, especialmente nos momentos mais delicados da jornada de saúde do indivíduo.

  

quarta-feira, 4 de junho de 2025

Assistência religiosa e as “brechas legalistas” para impedir um direito constitucional.

 

Quando um indivíduo se encontra na fragilidade do leito hospitalar, o direito à assistência religiosa emerge como um pilar essencial da dignidade da pessoa humana. No entanto, a ausência de clareza nas normativas pode transformar essa prerrogativa fundamental em uma fonte de insegurança jurídica, intensificando o sofrimento psíquico e espiritual do paciente e de seus familiares. Não raro, a rigidez burocrática impede que a fé, tão vital em momentos de crise, cumpra seu papel de amparo e consolo.

A Essência do Direito e Sua Fundamentação Normativa

A garantia da assistência religiosa em ambientes de saúde não se restringe a uma mera liberalidade institucional; ela encontra seu alicerce em múltiplos níveis do ordenamento jurídico brasileiro. Em sua tessitura mais elevada, a Constituição Federal de 1988 eleva a liberdade de crença a um patamar de direito fundamental e cláusula pétrea, irradiando seus efeitos protetivos para todas as esferas da vida civil e, notadamente, para o contexto de reclusão ou de internação hospitalar. Em conformidade com esse preceito magno, a Lei Federal nº 9.982, de 14 de julho de 2000, dispõe especificamente sobre a prestação de assistência religiosa em entidades hospitalares, tanto públicas quanto privadas, e em estabelecimentos prisionais, civis e militares. Adicionalmente, em um nível de regulamentação administrativa do Sistema Único de Saúde (SUS), a Portaria de Consolidação nº 1, de 28 de setembro de 2017, do Ministério da Saúde, ao consolidar normas sobre os direitos e deveres dos usuários da saúde, reforça explicitamente o direito ao "recebimento de visita de religiosos de qualquer credo". Embora essa Portaria condicione tal direito a que "não acarrete mudança da rotina de tratamento e do estabelecimento e ameaça à segurança ou perturbações a si ou aos outros" (Art. 4º, Parágrafo Único, XIV), a interpretação dessa condição deve ser sempre teleológica, buscando preservar a finalidade do direito fundamental, e não sua restrição desmedida.

As Consequências das "Brechas Legalistas": Violação e Angústia Injustificadas

É precisamente na lacuna operacional entre o direito fundamental assegurado pela lei e a ausência de diretrizes administrativas claras para sua efetivação que emergem as "brechas legalistas". Essas não são meras imperfeições técnicas; elas representam pontos de fragilidade que podem levar à violação do direito e à imposição de sofrimento adicional a pacientes e familiares em momentos de extrema vulnerabilidade.

Quando as normativas deixam a critério exclusivo da unidade hospitalar a definição de horários e condições de acesso para assistentes religiosos, sem contemplar a urgência da fé, abre-se espaço para interpretações restritivas que desconsideram a natureza imprevisível da doença e da morte. Em um cenário onde a vida e a morte não seguem agendas pré-estabelecidas, a imposição de horários rígidos para a entrada de assistentes religiosos, desprovida de flexibilidade para casos de urgência ou terminalidade, pode configurar um impedimento efetivo e inconstitucional do direito.

Tal restrição acarreta consequências graves: primeiro, uma violação da dignidade humana, pois nega-se o amparo espiritual no momento de maior necessidade, desrespeitando a totalidade do ser humano, que compreende dimensões físicas, psicológicas e espirituais. Segundo, um aumento do sofrimento psíquico e espiritual, pois para muitos pacientes e suas famílias, a impossibilidade de receber os últimos sacramentos, orações ou o conforto de sua fé em momentos críticos pode gerar profunda angústia, desespero e a sensação de que um direito essencial para sua concepção de salvação ou transição espiritual está sendo negado. Por fim, uma insegurança jurídica para o cidadão, visto que a ausência de clareza gera incerteza quanto à efetivação de um direito fundamental, deixando o paciente e sua família à mercê de interpretações variáveis e, por vezes, discricionárias das normas internas hospitalares.

A efetividade do direito à assistência religiosa demanda, portanto, que as normativas administrativas transcendam o mero formalismo e incorporem a sensibilidade necessária para garantir que a urgência da fé seja reconhecida e atendida. Somente assim o apoio espiritual será sempre acessível, especialmente nos momentos mais delicados da jornada de saúde do indivíduo.